sábado, 13 de março de 2010

Estruturas cómicas em D.Quixote

Introdução

Não existe cómico fora do que é propriamente humano ( Bergson, 1960:18).

O ser humano, diferentemente de outros animais, é por natureza um ser que ri. O riso é um fenómeno complexo, espontâneo e característico do Homem que nas palavras de Henri Bergson, “pressupõe entendimento prévio, cumplicidade com outros que riem, reais e imaginários”.
Diríamos nesse sentido que ele é uma “reacção” pronta a um objecto concreto ou ficcionário desequilibrado com aquilo que é a prática social instituída, colocando assim na sua origem o conceito de disformidade, conceito este que espelha a personagem cómica como uma personagem que está fora da virtude.
Ora, se o riso resulta de situações aparentemente irreconciliáveis, o cómico é a pessoa que faz rir. O cómico é um “mise en scène” de situações de tal forma que suscitem o riso, então ele por si não faz rir. Há um pacto entre a pessoa que ri, o conteúdo e o ambiente ou o contexto do riso. É nesta perspectiva que Bergson fala do riso como um gesto social (Bergson, 1960:28), pois tem uma função social: confirmar ou infirmar o (des)ajuste que se procura comunicar. Apesar disso, não se pode entender o cómico como pura e simples personagem que faz rir, que confirma ou infirma um dado (des )ajuste. Eis então o enfoque do nosso trabalho, o nosso objectivo é perceber em que medida a comicidade se manifesta em D.Quixote.
Ao longo do nosso trabalho procuraremos trazer à luz o sentido do termo “reacção” que acima mencionamos avaliando-o do ponto de vista cómico em relação às Estruturas cómicas em D.Quixote e, estas por sua vez comentadas com base na proposta do discurso paródico de Henri Bergson, “Le rire (1900)” e com base na proposta de Linda Hutcheon, em “Uma teoria da Paródia (1985)”. A escolha destes dois autores aos quais já fizemos referência tem a ver com o tema por eles desenvolvido, ou seja, sendo eles escritores que nasceram e viveram em espaços geográfico e temporal diferentes, desenvolveram o tema da comédia ( o da paródia) sem descurar do cunho científico em perspectivas quase diferentes e que acreditamos que nos conduzem, de certa forma, a uma visão mais esclarecida da problemática que se nos coloca.
Portanto, importa-nos dizer que se trata de uma apreciação tripartida entre as estruturas cómicas quixotescas iluminadas pela própria obra, pelo conceito de paródia em Linda Hutcheon (1985) e pelo o d´O riso em Henri Bergson (1900).
O trabalho basear-se-á na nossa compreensão do que constitui o cómico nos extractos retirados do romance D.Quixote de Miguel Cervantes. Esta opção justifica-se pela nossa inexperiência em matéria de análise literária aprofundada e também pela nossa bagagem literária quase laica.

Contextualização da análise
O que é uma fisionomia cómica? Não é fácil responder a esta pergunta embora nos pareça sê-lo se, de imediato, pensarmos simplesmente que a personalidade cómica dispõe de um “desencontro” entre o que se vê e o que se previa ver. A fisionomia cómica pode apresentar-se de vários tipos: o cómico das formas, o cómico dos gestos, o cómico dos movimentos, o cómico do carácter, o cómico das situações etc. ( Bergson, 1960:33), e cada um desses tipos pode, por sua vez, apresentar-se com suas especificidades. Vejamos um exemplo simples:
Um actor de teatro encena um político que quer convencer o eleitorado a votar nele porque dispõe de um certo programa para a melhoria da vida do povo. Imaginemos que este actor está em nossa frente (nós como espectadores) a proferir a seguinte frase de campanha eleitoral: “a partir de agora os que estão em frente passam para atrás e, os que estão atrás passam para a frente”!
Os braços do político ao apontar para frente querendo dizer “atrás” e ao apontar atrás querendo dizer “a frente”, entram em contradição com aquilo que diz e o que está naquele momento a tentar transmitir em relação ao contexto, que é nesse caso a campanha eleitoral: eis o ridículo. Mais
Ridículo tornar-se-á ainda se o político tentar reforçar a sua ideia repetindo várias vezes o enunciado diante do eleitorado que se ri cada vez mais do gesto contraditório daquele. Vários factores entram em cena tais como o carácter, a imagem, o mecanicismo gestual e a repetição. Para além do ridículo, há também o rebaixamento. Quanto maior o rebaixamento mais cómica é a situação, ou seja, se fosse, por exemplo, um sem-abrigo a fazer estes gestos, provavelmente não seria cómico, mas sendo um político, ao fazer isto, está a rebaixar-se e por isso gera o riso.
No entender de Bergson (1960) a mecanicidade gestual é estranha à nossa pessoa vivente e ela evidencia a parte de automatismo que essa pessoa deixou introduzir em si: é cómica a personagem que segue automaticamente o seu caminho sem tratar de tomar contacto com os outros.
Mais interessante ainda no nosso exemplo está o fenómeno claramente expresso da inversão semântica: o valor semiótico das palavras, a representatividade do gesto do político em relação ao código socialmente aceite naquele contexto ou a função pragmática do discurso proferido.

Análise da estrutura e personagem cómicas em D.Quixote
Todo o ponto de vista é vista de um ponto. Depende de quem o lê e daquilo que se interpreta dele: D.Quixote é um personagem polissémico, ou seja, um personagem que dá vários sentidos à vida humana. Se, por um lado, assumirmos um ponto de vista de reflexão do mundo, isto é, da conduta socialmente aceite, encontramos na sua pessoa ou o registo cómico ou o registo da loucura nas suas acções. Se por outro lado, nós assumirmos a sua personagem como uma personagem genuinamente coerente consigo mesmo, então ele é uma figura confiante e convicta nas suas acções.
O termo “reacção” para a nossa interpretação afigura-se com o sentido didáctico, pois queremos com ele ser o mais neutro possível para perceber as suas manifestações “cómicas”.
D.Quixote, fanático do seu ideal (ir para as quatro partes do mundo em busca de aventuras) e para isso deve a todo custo armar-se em cavaleiro valente (Onfray, 2004:47) implora ao administrador da sua hospedagem na fortaleza para o consagrar cavaleiro. O administrador, tendo entendido que o seu hóspede, do seu ponto de vista, estava perturbado aceita-o curioso e estrategicamente para acompanhar a sua “loucura”.
Relativamente à receptividade deste enredo quixotesco por parte do estalajadeiro salientamos a eleição da função avaliadora do interlocutor de D.Quixote dentro do quadro da dissonância entre o que o hóspede se propõe a ser e as atitudes deste; há aqui uma convergência cómica de todos os tipos de que atrás mencionamos. O “mise em garde” do ponto de vista de atitude por parte do estalajadeiro vincula o rebaixamento marcando um distanciamento em relação ao seu interlocutor em vez da aproximação (Hutcheon,1985:17), querendo desta forma anunciar a moral vigente: este é o tal sentido da palavra “ reacção” a qual temos vindo a tentar explorar ao longo da nossa dissertação. Diríamos até certo ponto que a reacção que brotou do estalajadeiro para além de ser irónica (com um tom satírico para ridicularizar as loucuras da humanidade), criou um tipo de riso o qual chamaríamos o riso latente de zombaria porque reparando para o aspecto físico e indumentária do seu hóspede nada tinha de cavaleiro andante e muito menos reunia condições para tal. Mas o estalajadeiro aceita para ver o que vai acontecer a posterior. É nesse sentido que ele o aceita e o apoia para em seguida o rebaixar.
Assim, o acto de apoio e irónico concebido desta maneira consubstancia-se essencialmente na vulgarização das intenções quase que impossíveis (na maior partes delas impossíveis) do ponto de vista do interlocutor de D.Quixote.
(….) não há dúvida nenhuma que a comédia é um jogo, que imita a vida (Bergson, 1900:58). E, nós concordamos com a afirmação de Bergson pois toda a vida é feita de símbolos com base nos quais se codificam as experiências sociais, nomeadamente as relações de família entre as pessoas, os códigos de conduta na sociedade entre outros. Se todas essas experiências humanas e tantas outras às quais não fizemos referência decorressem dentro do formato normativo da sociedade não haveria razões para a imitação e daí nenhum acto cómico suscitaria. É que as estruturas cómicas, como quisemos ilustrá-las, denotam a simbolização de um jogo particular de elementos morais (Bergson ibidim), jogo esse que quando desajustado faz rir porque não compactua com o instituído.
O episódio do encontro de D.Quixote com os frades de S.Bento (Cervantes,2005:43) reflecte de algum modo a questão moral para os valores apregoados pelos personagens envolvidos no cenário: D.Quixote, Sancho e os religiosos. Cada um deles representa uma certa perspectiva da vida e por isso uma certa valorização moral para tal. Os Beneditinos (religiosos de S.Bento) são pessoas que têm uma vida austera e vivem em comunidade e comprometidas com um estilo de vida cujo centro é Deus. D.Quixote é também uma figura construtora de sua “religião ”: acredita na materialização do que lera nos romances e, Sancho Pança por sua vez apresenta-se como uma pessoa fiel ao seu mestre. Cada um desses personagens relaciona-se com um objecto motivador da sua forma de estar no mundo e que acredita nesse objecto como um valor axiológico. Estamos perante três modelos éticos que se divergem entre si dispostos numa escala valorativa de tal maneira que a sua exibição remete-nos a uma reflexão para perceber como é que as três e diferentes moralidades desencadeiam o riso. Estamos a falar do cómico da situação. A fidelidade de Sancho Pança a D.Quixote é intencional pois esta circunscreve-se numa recompensa objectiva: receber uma Ínsula e governá-la. Ele assume uma postura socialmente aceite mas orientada para a intenção final, o que nos faz concluir que o facto de ser alguém que é mais próximo de D.Quixote não significa que internaliza o estilo de vida deste. As suas buscas são mais materiais e para consegui-las submete-se às tontarias. O realismo que lhe caracteriza não denota justiça, sensatez, dignidade, mas representa o apego àquilo que lhe é familiar, ou seja, como pessoa com poucas posses e menos instrução é óbvio que se preocupe com o que está à sua volta objectivamente. Fazendo isso, realça cada vez mais o (in)aceitável em D.Quixote de tal forma que cria uma relação binária de (des) equilíbrio dos actos desses personagens completando-se mutuamente. Os Beneditinos são mais platónicos: desprezam a vida humana em detrimento da sua crença segundo a qual o melhor está por vir. Eles são mais escatológicos e por isso não valorizam o material por que este, segundo eles, é perecível.
D.Quixote imbuído na busca do seu reconhecimento como cavaleiro andante, por isso a fama é para ele importante, não perde a oportunidade de realizar boas obras por onde passa salvando principalmente aqueles que na sua realidade precisam de salvamento (como ilustra o episódio da batalha travada com os frades em defesa da Princesa). A intenção de D.Quixote em companhia do Sancho é de acudir a Princesa que, segundo ele, estava sendo roubada pela carruagem dos monges que seguiam o seu caminho. A situação em si não é cómica se repararmos na intenção de D.Quixote e dos religiosos. Ela passa a ser cómica porque, nós observadores, compreendemos o status quo da ordem religiosa desses anacoretas como pessoas moralmente boas e que tal acto incomum no seu mundo para além de inadmissível é inimaginável que possa ter lugar. Mesmo assim eles são agredidos sob astúcia da boa intenção de D.Quixote para salvaguardar a sua boa reputação como cavaleiro andante. Nesse desenrolar de acontecimentos Sancho completa a agressão do seu mestre tirando o hábito do frade agredido justificando assim a sua fiel missão de acompanhar incondicionalmente o seu par, D.Quixote. O que nos faz rir nesse episódio é o facto de sermos cúmplices da situação. Por outras palavras, da leitura que fizemos do episódio emergiu uma segunda leitura que nos permitiu aceder às intenções formais comparadas com a situação, este episódio, quanto à nós, representa o cómico da situação.

Em forma de síntese e conclusão
Ao longo da curta exposição sobre o tema em análise o risível foi sendo mencionado como veículo que visa à correcção dos vícios, os quais considerados como incongruentes com a prática social vigente.
É que o próprio tema foi-nos induzindo a ler o lado incomum da prática social, daí que o personagem D.Quixote foi aparecendo como uma figura por vezes cómica, por vezes louca do ponto de vista de quem assiste às suas acções e, a conclusão da análise foi que o papel principal do cómico era o de criticar, pondo à luz do dia o que está à margem do contracto social focalizando-se o rebaixamento da personagem.
Reconhecemos inúmeras dificuldades em relação ao estudo das estruturas cómicas e em relação ao modo de detectá-las uma vez que esse trabalho precisa que a intenção do autor (ou do texto), o efeito sobre o leitor, a competência envolvida na codificação e descodificação sejam cuidadosamente controlados do ponto de vista de partilha da intenção de comunicação.
E, finalmente, assinalamos a nossa síntese com a seguinte frase: Ciumento da palavra, o gesto acode logo por trás do pensamento e também ele quer servir de intérprete (Bergson, 1900:34).


Referências bibliográficas
Cervantes, M. (2005). Dom Quixote de la Mancha. Lisboa: Publicações Dom Quixote.
Hutcheon,L. (1985). Uma Teoria da Paródia. Edições 70, Lisbon.
Bergson, H. (1960). O Riso - Ensaio sobre o significado do Cómico. Tradução de Guilherme de Castilho. 2ª edição: Guimarães Editores.
Costa et al.(1998). Dicionário da Língua Portuguesa. 8ªedição. Porto Editora.

Sem comentários:

Enviar um comentário